22.2.07

historinhas

Por mais que quisesse escrever sobre aquilo, Clarice preferiu guardar para si. Abriu o diário e folheou. Não havia nada de interessante desde abril. Então contemplou a página em branco que pedia escrita e decidiu pensar no foco daquele relato.
Enquanto isso, um homem virava a esquina. Era alto e magro, nas mãos uma revista de engenharia. Olhou para o relógio e contastou o atraso. Margarida ficaria furiosa. Apressou o passo.
Do outro lado da rua, um gato observava o céu deitado de costas. Ele rolava de um lado para o outro e, cada vez que uma das patinhas tocava o solo, ele jogava o peso do corpo para o outro lado e assim balançava devagar, olhinhos semi-abertos, sombrinha semi-fresca.
Clarice precisou apenas de três palavras: um+dia+inesquecível. Sorriu e, antes de fechar o caderno, pegou um pedaço de papel onde Christian estava escrito acima de um número de telefone. A garota suspirou e pensou em não ligar. Porque ele não ligaria. Quis rasgar o diário. Mas guardou o papelzinho e fechou.
Margarida mexia a sopa como quem bate carne. Um pouco espirrou em seu rosto e quis gritar seu ódio a André. Em vez disso, limpou o líquido quente com a camisa branca. "Que se dane". A campainha tocou e era ele. Embaixo do braço, a engenharia. "Pois então estava na banca e isso era mais importante???". "Não, eu sou ruim com horários". André tentou abraçá-la, mas a mulher bufou e virou de costas.
O gato de rua abriu os olhinhos mais uma vez enquanto dançava deitado. Um cheiro de comida ao longe o fez levantar. Andou três passinhos e parou. Estava pisando em mármore geladinho. Deitou novamente.
O telefone tocou. Era ele?? "Alô, Clarice?" E ela o amou porque ele disse alô.
André sentou na poltrona da sala e decidiu que iria embora. Olhou para o quadro na parede: Búzios, 1997. Quis ficar, mas não poderia viver assim, por mais que a quisesse muito. Na cozinha, a pranto quieto, estava Margarida. Ela só queria se sentir amada nas horas em que não fosse preciso. Queria a surpresa constante, o frio na barriga. E André só lhe aparecia na hora marcada, senão atrasada, com a mesma cara, com o mesmo terno marrom.
Uma perna a dois metros despertou seus desejos felinos mais íntimos. Levantou, andou sorrateiro até seu alvo e lá encostou. A perna reagiu fortemente e o gato voou longe. Mas como havia muita sombra e muito chão geladinho, ele nem se importou.

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