17.5.09

diva.

Carine Corelli é a rainha dos palcos. Com sessenta anos de carreira, já atuou em quase todos os clássicos do teatro mundial. Sempre adorada, flores enfeitam seu camarim. Críticos a consideram a lenda viva do drama, isso porque ficou famosa ao interpretar personagens sofridas, muitas vezes tão carregadas de sentimento que o público chorava copiosamente, seja face à pobre mãe que perdera seu filho na guerra, seja face à triste amante enganada pelo vil namorado.
Frágeis mãos pincelam levemente a bochecha cândida e enrugada e, com carinho, pintam seus lábios de vermelho cereja. Mãos que completam setenta e cinco anos esta noite, e que receberão grande festa depois que o espetáculo terminar.
Desta vez, Carine será ela mesma no palco. O texto sobre sua vida, escrito por seu melhor amigo e diretor, Henri, é aguardado por todos os que lotam a casa. A imprensa está em peso na estreia, assim como gente famosa, amigos e fãs da atriz. Eles se perguntam o que será revelado naquelas linhas, e, principalmente, se seus corações estarão prontos para o que há por vir.
Soa o terceiro sinal. Silêncio.
Corelli entra em cena. É ovacionada. O monólogo começa. Vinte minutos depois, nada de muito excepcional ou chocante. A atriz representa momentos de sua infância pobre no subúrbio de Paris, seu primeiro namorado, seus desejos e anseios. Ouve-se um bocejo no fundo da plateia. Envergonhados, muitos espectadores baixam suas cabeças ou olham repreensivos em busca do grande atrevido.
Final do último ato, a atriz declara: estou morrendo. Em seguida, leva a mão esquerda ao peito e exprime uma feição de dor. A plateia emudece. Finalmente, o grande momento da rainha. Ninguém ousa piscar ou desviar os olhos do palco. Corine cai de joelhos no tablado. O som da queda acentua a emoção. Ainda com a mão no peito, a atriz repete: estou morrendo. Um grito seco foge de sua boca e atravessa todas as almas ali presentes. Carine cai completamente na madeira dura e empoeirada. Ouvem-se soluços. Um segundo depois, irrompe uma salva esmagadora de aplausos e todos se levantam. Bravo! Bravo! Flores são arremessadas ao palco. Por cinco minutos, há êxtase geral. Dez minutos se passam e Carine não se levantou ainda. Nem mesmo se moveu.
O autor então aparece correndo e manda fechar as cortinas. Ele não diz nada, mas sabe que há algo errado. Não era aquele o final que escrevera para a peça. Pede para todos se afastarem e fica muito nervoso ao ver que a cortina ainda está aberta.
Ele toca delidadamente a face de Carine, rígida e fria. Lágrimas escorrem de seu rosto e mancham o blush da rainha dos palcos, morta.
Ninguém ousa pronunciar uma palavra. E, mesmo nos jornais, mesmo na tevê ou na internet, ninguém fala da morte de Carine. É como se o mundo todo tivesse parado o tempo e prendido a respiração, ainda esperando ansiosamente que a majestosa dama se levante do tablado e, gloriosa, termine seu último e mais ousado ato.

2 comentários:

Oito disse...

Lembra do Kaufman? Pois é...
E por que será que os melhores amigos são sempre diretores (para não dizer motoristas)? Será que precisamos tanto de direção que a buscamos no "guión" (roteiro, en español, mas também hífen, para não dizer "Henri")?

Oito disse...

O-quei, meu comentário ficou semiótico demais... Desconsidere a paranóia analítica, fica o elogio pelo post.